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Testemunhas de Jeová: da maturidade do sistema jurídico pátrio e internacional em respeitar a decisão de não submissão ao tratamento e suas repercussões para a responsabilidade civil e penal do profissional da medicina – vitória da autonomia individual e da liberdade religiosa.

 
Introdução
 
O respeito à autonomia individual, a liberdade religiosa e o dever estatal de proteger a vida e a saúde constituem questões centrais nas sociedades modernas. A tensão entre esses princípios emerge especialmente em casos que envolvem recusas de tratamentos médicos que podem salvar vidas, como as transfusões de sangue, rejeitadas por motivos religiosos, como no caso das Testemunhas de Jeová. A análise comparativa entre o Brasil e a Europa sobre o tratamento judicial da recusa de transfusões de sangue reflete diferentes abordagens na harmonização entre a autonomia do paciente e a proteção à vida.
 
Decisão do Supremo Tribunal Federal: RE 1.212.272 e RE 979742, Tema 952
Em 25 de setembro de 2024, o STF consolidou, no julgamento dos Recursos Extraordinários 1.212.272 e 979742, a possibilidade de Testemunhas de Jeová, quando maiores e capazes, recusarem transfusões de sangue com base na autonomia individual e liberdade religiosa. O Tribunal estabeleceu duas premissas centrais:
 
  1. O direito de recusar transfusões de sangue com base na liberdade religiosa.
  1. A garantia de acesso a tratamentos alternativos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), ou tratamento fora de domicílio, caso necessário.
 
A decisão reafirma o direito constitucional à liberdade de crença e autonomia pessoal (art. 5º, VI da Constituição), além de destacar a importância da proteção à saúde, ao garantir o acesso a procedimentos alternativos no SUS, sem impor tratamentos aos quais o paciente, de forma consciente, se opõe. No entanto, o acórdão também apresenta implicações nas esferas civil e penal, sobretudo no que tange à responsabilidade dos profissionais de saúde e do Estado em casos de negativa de tratamento.
 
Responsabilidade Civil e Penal
 
O STF, ao garantir o direito de recusa, cria um marco importante para a responsabilidade civil e penal dos profissionais de saúde. Em situações de recusa, a responsabilidade de danos decorrentes da falta de tratamento transfusional pode ser afastada, desde que os profissionais tenham oferecido alternativas seguras e documentado adequadamente a recusa informada do paciente. Este porém, é facilmente escrito por profissionais do direito, mas dificilmente executável por profissionais da medicina na prática, ademais em rincões deste país continental que não tem uniformidade de qualidade de acesso aos serviços de saúde.
 
A negativa consciente e documentada exime os médicos de responsabilidade penal por omissão de socorro, mas mantém a obrigação de oferecer as melhores alternativas terapêuticas disponíveis. Assim, a decisão equilibra o respeito à liberdade de crença e a proteção do direito à vida e à saúde, dois valores constitucionais fundamentais.
 
Caso "Pindo Mulla v. Spain": Corte Europeia de Direitos Humanos
 
O julgamento de "Pindo Mulla v. Spain", pela Corte Europeia de Direitos Humanos (ECHR), em setembro de 2024, traz uma perspectiva semelhante, porém com nuances específicas. A requerente, uma Testemunha de Jeová, recusou transfusões de sangue durante um tratamento médico de emergência. No entanto, as transfusões foram administradas contra sua vontade, com base em uma decisão judicial que autorizava os médicos a agirem para salvar sua vida, devido à gravidade de sua condição. A Corte foi solicitada a avaliar se o direito à vida e à saúde poderia justificar a violação da autonomia pessoal e da liberdade religiosa, garantidos pelos artigos 8 (direito à privacidade) e 9 (liberdade de religião) da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
 
Autonomia vs. Proteção à Vida
 
No caso de Pindo Mulla contra o Reino da Espanha, a ECHR (Corte Europeia de Direitos Humanos) enfrentou o desafio de equilibrar o direito à autonomia com a obrigação do Estado de proteger a vida. A Corte reconheceu que, embora a autonomia seja um princípio fundamental, em situações de emergência onde a vida do paciente está em risco imediato, o Estado pode intervir para salvar a vida, mesmo que isso contrarie a vontade do paciente expressa em diretrizes anteriores ou consentimentos informados.
 
O julgamento destaca que, em situações de risco imediato à vida, a decisão dos médicos de realizar transfusões foi justificada, uma vez que havia uma séria ameaça à integridade física da paciente. No entanto, a ECHR[1] criticou a falta de consideração adequada pelas diretrizes antecipadas e os desejos previamente expressos pela paciente, recomendando uma melhor harmonização entre a autonomia do paciente e a necessidade de intervenção médica emergencial.
 
Comparação das Decisões: Pontos de Convergência e Divergência
Convergências
 
Tanto a decisão do STF quanto a da ECHR reconhecem a importância da autonomia individual e da liberdade religiosa no contexto médico. Ambos os tribunais enfatizam que, quando se trata de pacientes adultos e capazes, o direito de recusar tratamentos médicos deve ser respeitado. No caso das Testemunhas de Jeová, essa recusa é especialmente protegida por se basear em crenças religiosas profundamente arraigadas.
 
Outro ponto de convergência é o reconhecimento da responsabilidade do Estado e dos médicos em fornecer alternativas seguras ao tratamento recusado. No Brasil, o STF enfatiza que o paciente tem direito a tratamentos alternativos no SUS, enquanto a ECHR ressalta a necessidade de considerar os desejos previamente expressos pelos pacientes, especialmente em situações de emergência.
 
Divergências
A principal divergência entre as decisões está na maneira como cada tribunal aborda o conflito entre a autonomia do paciente e a obrigação do Estado de proteger a vida.
 
Enquanto o STF do Brasil favorece a autonomia do paciente, permitindo a recusa mesmo em situações de risco, a ECHR parece inclinar-se para uma abordagem mais paternalista, permitindo que os médicos intervenham em situações de risco iminente, mesmo sem o consentimento do paciente, quando a vida está em jogo.
 
Essa divergência reflete uma diferença mais ampla nos sistemas jurídicos. No Brasil, a autonomia pessoal e a liberdade religiosa tendem a prevalecer sobre as intervenções estatais, mesmo em casos de risco à vida. Na Europa, a proteção da vida tende a ser vista como um imperativo estatal, que pode sobrepor-se, em situações extremas, à vontade individual, especialmente quando há incertezas sobre a capacidade do paciente de tomar decisões no momento crítico. Porém, a condenação, na corte internacional europeia se deu por desrespeito a diretrizes prévias consignadas pela Paciente, a equatoriana a senhora Rosa Edelmira Pindo Mulla
 
 
Impacto na Responsabilidade Civil e Penal
 
No Brasil, a decisão do STF cria um escudo claro contra a responsabilidade penal dos profissionais de saúde em casos de recusa de tratamento por pessoas que professam a fé Testemunhas de Jeová. Desde que sejam respeitados os requisitos de informação e consentimento, e oferecidas alternativas seguras, os médicos não podem ser responsabilizados por omissão de socorro. Na Europa, a abordagem é mais complexa, uma vez que a intervenção forçada em situações de emergência pode gerar responsabilidades civis, caso se prove que a decisão judicial de autorizar o tratamento não considerou adequadamente os desejos expressos do paciente.
 
Conclusão
O direito à autonomia individual e à liberdade religiosa enfrenta desafios constantes quando colide com o dever do Estado de proteger a vida. No Brasil, o STF firmou posição clara a favor da autonomia, enquanto a ECHR, embora reconhecendo esse direito, permite exceções em situações de risco iminente à vida. As decisões destacam a complexidade de equilibrar esses princípios fundamentais e sugerem a necessidade de que os sistemas de saúde e os tribunais desenvolvam abordagens mais refinadas para lidar com tais dilemas. A responsabilidade civil e penal, nesses contextos, permanece um campo em evolução, exigindo ajustes constantes para refletir a realidade dos direitos fundamentais em uma sociedade pluralista.
Esse comparativo oferece uma análise densa, com temperamento jurídico adequado, das nuances entre as decisões, oferecendo uma base robusta para discussão acadêmica e profissional sobre o tema.


TEXTO BY: Dr. Rodrigo Torres.
Instagram: Rt_direitomedico

[1] European Court of Human Rights.

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